Vê se não morre, toma cuidado
hoje eu me peguei lembrando de um dia de uns vários anos atrás. eu tenho quase certeza que era época de férias, então devia ser dezembro ou julho. provavelmente dezembro. lembrei da gente andando num lugar meio desconhecido, bonito, cheio de mato. havíamos parado em uma loja dessas de conveniência qualquer e comprado um salgadinho pra cada um, então o dia tava bonito mesmo.
eu lembro que estávamos a mamãe, eu, duas das minhas amigas e você, que devia estar perto de fazer um ano. em termos de dinheiro as coisas tavam curtas naquele tempo, bem mais curtas do que agora, com certeza. só sei que de algum jeito aquilo não impedia a gente de ser feliz, muito menos de ser feliz naquele dia.
o destino era o Butantan, inteirinho e antes do incêndio. e por mais que nenhum de nós tivesse algum dia gostado de biologia, a gente queria aquele passeio mais que tudo. do dia em si eu lembro pouco, da gente andando naquele verde sem fim, vendo uns bichos que não se vê todo dia, de você me agarrando forte por estar com medo. e eu também lembro da volta.
não sei porque mas os caminhos sempre parecem maiores na volta. hoje eu sei que o Butantã nem fica tão longe assim, mas naquela época eu podia jurar que a gente tava de viagem. o ônibus estava lotado mas você e a mamãe conseguiram um lugar lá na frente. eu e as meninas não nos importamos nem um pouco em passar o caminho todo sentadas na escada. a gente riu muito naquele trajeto, eu nem lembro do quê, mas tenho na cabeça a imagem de que algumas pessoas chegaram até a se incomodar com aquela felicidade toda. não deviam, podiam facilmente ter se juntado a nós.
eu realmente não sei porque fui lembrar desse passeio específico hoje, mas sou grata que lembrei e grata porque aconteceu. é bom sentir essas coisas, perceber que apesar de todos os apesares, a vida é linda e tá aí pra ser aproveitada. eu queria muito que você, assim como eu, pudesse ter essas histórias no futuro, percebesse que apesar de o "ter" muitas vezes parecer falar mais alto, lá na frente o que realmente importa é o que você foi.
eu sou todos os passeios que fiz quando era pequena, todas as peças de teatro que vi na vida e até mesmo as batatinhas de barraca que geralmente eram a única opção quando a fome apertava. eu sou aquela coxinha incrível que comi com a vovó, depois da meia noite, na porta do de um hospital qualquer de Santo Amaro, numa vez que você não conseguia respirar direito e a gente foi obrigada a correr com você às pressas.
eu quase não lembro dos brinquedos que tive quando pequena, mas lembro bem dos gibis que ganhei no natal antes de você nascer, quando também disseram que eu podia ajudar a escolher seu nome. lembro dos vários meses que vi a mamãe bordar uma toalhinha pra você, até a gente decidir que Matheus não era a escolha certa. eu lembro dessas coisinhas pequenininhas e que de algum jeito sou grata por ainda estarem aqui, guardadas.
em algum momento da vida, eventualmente, a gente percebe que o que importa realmente são as histórias. o que fica depois que as luzes se apagam e sobra só você e sua consciência. as pessoas que passaram pela gente, a marca que elas deixaram e o que a gente foi capaz de transmitir. eu espero que você possa entender isso. e entender que isso é o que a nossa família é e sempre vai ser. histórias, momentos, passeios. só isso, mas de algum jeito o suficiente. assim como diz um filme que eu gosto e assim como está estampado em vários muros da avenida Paulista: as melhores coisas da vida, elas não são coisas.
lembro como falavam que de algum jeito o que faltava em mim tinha em você. que dos genes da razão eu tinha herdado todos, enquanto você ficara com o coração. porra, mas será que você nunca aprendeu mesmo nada do que eu te ensinei? que sem um coração pra bater compassado o cérebro morre por falta de ar? queria dizer, já tá difícil respirar aqui em cima. e eu não tô sabendo existir.
pessoalmente eu já não tenho forças pra falar, mas algo dentro de mim grita e ainda tenta, porque de algum jeito, você é um pedaço do que eu também sou, e eu detesto não ser inteira. por mais que pareça que não, a gente tá aqui, te esperando. provavelmente vai continuar, não importa o que aconteça. porque isso é tudo o que eu sei sobre como devem ser as famílias. estar lá ao final do dia. estar lá quando o dia começa. estar ali de longe, torcendo por você, mesmo que seu caminho não seja aquele que eu acho que devia seguir.
aproveita. curte até onde achar que tem que curtir, mas por favor, volta. ao contrário de tudo aquilo que você me disse nas ultimas vezes que tentei falar com você, vê se não morre. já te disse isso, tenho certeza, mas sempre acho que vale a pena tentar: a gente é parte de um todo só e o que eu sou sente falta do que era ser contigo. me desculpa, eu bem que tento mas não dá, não sei ser metade. vê se volta.
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