Da infinidade de coisas que a gente pode entender enquanto assiste Grey's Anatomy.

Meu pai me ensinou que a gente precisa esperar o telefone tocar duas vezes antes de atender, pra evitar ser atingido por uma descarga inesperada de energia. Eu deveria ter aprendido, mas não consegui.

Oito anos atrás, quando eu tinha doze e não entendia quase nada, o telefone de casa tocou e nem que eu tivesse esperado até o último toque pra atender, nada iria me preparar pra toda energia que eu vi ser descarregada sobre mim. Eu ouvi aqueles gritos, perguntei de novo pra ter certeza que não era pegadinha e larguei o telefone no chão, fiz o que a gente faz quando não sabe o que fazer e o mundo parece grande demais pra você. Corri pra minha mãe e avisei que tinha alguém no telefone, fingi que não tinha ouvido notícia nenhuma, que o mundo ainda era mundo e que não era verdade até me contarem pra valer, mesmo depois de já ter ouvido duas vezes. Dali minha mãe ligou pro trabalho do meu pai, avisou que estava indo buscá-lo pra se despedir do maior amor que ele um dia conheceu. Minha avó tinha ido embora.

Uns anos mais tarde, quando eu tava empolgadas montando uma estante que a gente tinha acabado de comprar, o telefone tocou de novo, e mesmo esperando pelo segundo toque, a descarga veio. Chamei meu pai. Eu assisti eles pegarem as bolsas e correrem pro hospital. Ninguém sabia o que tava acontecendo, muito menos quanto tempo a noite ia durar. Ainda sim, antes de sair meu pai me alertou que não sabia se o mundo ainda estaria lá quando eles voltassem, e que mesmo assim eu deveria ser forte e ter certeza que mantia os pés no chão nesse meio tempo, pra não assustar meus irmãos. Não foi naquele dia, mas ali foi o começo do fim.

Dali em diante e pelos próximos três meses eu tive medo de todas as vezes que o telefone de casa tocava. Porque sempre podia ser a hora, por mais que a gente não quisesse que ela chegasse, mas soubesse que ela tava próxima e precisava vir. Ali eu aprendi que ver quem a gente ama ir embora dói, machuca, mas ver ele sendo incapaz de ser quem é te destrói, aos poucos e um pouquinho mais todo dia.
Quando o telefone tocou aquele dia não fui eu que atendi, mas a gente já sabia. E não doeu tanto assim porque eu sabia que de algum jeito você tinha se livrado da dor, aquilo me consolava. Ainda sim, meu pai me contou que aquela vez foi a primeira vez que o mundo o derrubou e não tinha ninguém lá embaixo pra segurar.

No meu trabalho, uma das primeiras coisas que me ensinaram foi que se algum telefone tocasse e a pessoa não estivesse lá pra atender, você deveria fazer isso o mais rápido possível. Que o telefone não poderia tocar muitas vezes, e foi o fim da regra do meu pai. 

Dali em diante eu sempre atendo tudo no primeiro toque, e por amar a vida e nela pessoas sob quem eu não tenho controle nenhum, sempre fico com medo do que está por vir. Eu nunca sei o tamanho da descarga que podem lançar em mim e não tenho mais aqueles dois toques pra me preparar. Talvez seja essa a razão que faz algumas pessoas ignorarem o toque do telefone: a gente nunca está pronto, seja lá o que for.

Agora pouco eu estava aqui chorando por um trecho minúsculo de Grey's Anatomy em que a Meredith explica pra Zola e pro Bailey que o Derek não pode voltar e eu acho que finalmente entendi. É isso o que é ser adulta. É isso que crescer faz com a gente. Encarar os medos mesmo não estando preparada pra eles. Receber descargas de energia e se queimar mesmo que você tenha feito todo o possível pra estar pronto caso elas viessem. Ter que segurar o mundo de alguém quando você nem mesmo tem certeza se o seu permanece firme. É isso. Você nunca está pronto mas vem alguém e te diz que precisa estar. E que não tem como esperar mais tempo, porque agora é a hora é o trem já está passando. Que não tem como pedir intervalo no espetáculo da vida e que a gente precisa improvisar. Que não importa quantas garrafas de água você leve, ainda sim vai te faltar voz e que você vai ter que encarar a plateia mesmo assim. É, eu entendi. Ainda sim, todos os dias me pego torcendo pra que o telefone não toque.

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