Miguel, a gente promete não esquecer.
Há 5 dias eu fico pensando que a minha mãe, como mãe de um menino negro, podia ser a mãe do Miguel. Que a minha avó, como empregada por uma vida, também podia ser a mãe do Miguel. A gente sobreviveu.
Eu passei grande parte da minha infância indo entregar costuras junto com a minha avó na casa dos fregueses dela. Os lugares sempre muito cheios de coisa, com salas que pareciam maiores que a minha casa inteira. Sempre tinha muita casa e pouca gente. Engraçado que eu lembro pouco dos donos das casas mas lembro muito da Iô. A Iô era empregada de uma das casas e também amiga da minha avó. A Iô, de Iolanda, era negra.
Eu penso no que seria diferente se minha pele fosse um pouquinho mais escura. Se teriam coragem de me deixar sentadinha na sala esperando, sozinha, enquanto minha avó tirava as medidas das freguesas no quarto. Se eu teria sido bem vinda nas viagens com esses patrões da minha avó, se eles teriam me deixado entrar na piscina como eu entrei. Eu sempre fui mansa e só depois de mais velha entendi o meu lugar na negritude e que sim, ainda que minha pele seja mais clara que a dos meus pais, que eu também sou negra.
Não sei se vocês já viram Que Horas Ela Volta? mas eu assisti quando ainda estava no cinema e passei o filme todo pensando na minha avó. Minha avó era a Lucia, foi a Lucia a vida toda.
Minha avó, assim como eu mas ao mesmo tempo de outra forma, não tem a pele tão escura e nem o cabelo crespo Minha avó muitas vezes não era considerada assim tão negra e por isso conseguia acesso a alguns espaços. E por isso e outras coisas o racismo que ela viveu sempre foi aquele mais velado, dos comentários que dizem sem querer dizer. Esse ano nós visitamos a cidade em que ela nasceu. Minha avó sofreu muito ali, e apesar da gente saber os porquês, a gente também não sabe e nem sabia de tudo.
Minha avó foi criada pela família de seus padrinhos, brancos, depois da mãe ter falecido quando ela tinha dois anos de idade e do pai, preto, tê-la deixado lá. Em Pinhal nós visitamos a igreja matriz da cidade e quando minha avó contou um pouquinho da história e queria saber da moça da igreja se ela tinha notícias daquela família que a criou, o comentário foi "ah, os ----------, mas eles são tão branquinhos". Naquela hora ninguém disse mas nada porque a gente nunca tinha vivido aquela cena. Todo mundo sentiu. Foi racismo. Em poucas palavras, o que a moça disse foi que minha avó, da cor que ela é, não podia ter sido criado com aqueles que eram tão branquinhos.
Há alguns anos eu e meus pais costumamos faze o teste do pescoço quando estamos em algum lugar. Ficamos contando os pretos em todo o espaço e vendo qual papel eles estão fazendo ali. Em Pinhal a gente não via pretos. Num geral, não via. E éramos uma família de 5 pretos turistando numa cidade que não é de turistas. Minha avó também contou que mesmo pequena tinha lugares em que não podia sequer pensar em brincar, ela era preta.
O que eu quero dizer é que a minha avó, como empregada, podia ser a Mirtes, eu podia ser o Miguel. Tanta gente podia, tanta gente é. Por que a gente continua aceitando que eles interrompam nossas vidas assim? Que tratem como o pior pedaço de lixo? Que achem que a gente não merece cuidado, um carinho? Por que minha avó não podia ser da família de brancos? Por que a patroa não conseguiu distrair o Miguel por 5 minutos? Por que nossas mulheres pretas ainda gastam a vida cuidando de filhos que não são delas? Por que seus filhos não são vistos como dignos? Por quê? Eu tô com ódio. Deus me diz pra não ter ódio, então eu escrevo pra tentar canalizar. Mas eu tô. Me perdoa, Deus, perdoa a ira. Mas não me perdoa por me insurgir contra injustiça porque de algum jeito eu sei que Jesus estaria aqui comigo. O que estão fazendo com a gente não é certo. Não é certo, Deus. O que eles fazem não é certo e a gente não vai esquecer, Miguel.
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